OLHAR COMO CONSTRUÇÃO
Agnaldo Farias
publicado na Revista Peixe Elétrico #9
A oeste o rio Hudson, conhecido de muita gente ao menos de nome, a leste o rio East, um estreito de 26 quilômetros que nasce no estuário de Long Island, logo acima da metrópole. Ambos descem pelo estado de Nova York sublinhando o contorno longilíneo da ilha de Manhattan; encontram-se mais ao sul, quando ela se acaba numa ponta rombuda, e desembocam misturados no Atlântico Norte. O skyline serrilhado de Manhattan é tão grande, seus desfiladeiros imensos, que se admira que a comprida área da ilha suporte aquela massa de ferro, concreto e vidro. Sob o impacto dessa presença, as porções de cidade que se expandem pelo continente, particularmente aquelas situadas nas margens dos dois rios, parecem espiá-la, expectantes, conscientes de que seu futuro defini-se grandemente por ela, que é o coração cidade de Nova York.
Essas fotografias de Tuca Vieira tratam disso, embora não só. Ele as obteve por meio de pesquisa criteriosa, cujo método consiste em combinar descobertas com construções, acasos com estudos, chegando a resultados excepcionais, como o mapeamento que faria em São Paulo (Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores, 2016). Mas este veio primeiro. Teve lugar nas bordas do rio East, um levantamento rigoroso na sua porção que separa Manhattan do bairro do Brooklin, e um pouco mais abaixo, quando o East e o Hudson viram um só rio.
Armado de pedestal e câmara de grande formato, Tuca selecionou esquinas e quarteirões junto ao rio, selecionou as várias edificações existentes e, acima de tudo, selecionou os lugares e os ângulos, as luzes, as horas do dia, enfim, todo o necessário para a captura de prédios relativamente altos, edifícios residenciais e de escritórios, edifícios-garagem, edifícios guarda-móveis, além de galpões, armazéns, muros, cercas, portões e todo um elenco de construções característicos de zonas vizinhas a portos; zonas marginais decadentes quase abandonadas, zonas apetitosas aos parâmetros urbanísticos desenvolvidos nos últimos quarenta anos, alvo dos implacáveis e lucrativos processos de gentrificação.
Mas são os prédios, isolados ou combinados, assim como as várias construções encontradas, por despretensiosas que aparentemente sejam, os protagonistas dessa série. São antigos moradores do lugar, é possível perceber em alguns as sobras de uma dignidade, enquanto outros parecem humilhados pela irrupção arrogante de um novo vizinho. Há também aqueles que apenas sobrevivem sem que saibamos ao certo de que maneira, como os habitantes dos baixios dos viadutos e marquises das grandes cidades, tocados dali logo chega a manhã. Há, por fim, as marcas dos que já se foram, desmilinguiram-se, sucumbiram, rapidamente esquecidos: os vazios por trás dos muros. Vai saber o que surgirá em lugar do que havia.
Uma das teses implícitas no trabalho de Tuca Vieira, em seu modo de destacar as edificações como protagonistas, fazendo-as esplender por si só, sem a presença de pessoas, o que poderia concorrer para o desvio da nossa atenção, é que as edificações de uma cidade correspondem ao corpo vivo de seus habitantes, isso em sentido concreto, físico. Cada edificação, assim como cada um de nós, possui peculiaridades fisionômicas, envergadura própria, apuro ou desmazelo no vestir, exala soberba e autoestima ou submissão e inferioridade. Avançando na trilha das casas animadas chegamos à Casa tomada de Julio Cortázar, à A vida modo de usar, de Georges Perec, e, antes deles, A queda da casa de Uscher, de Edgar Allan Poe, que deu sequência a tradição casas mal-assombradas inaugurada por Horace Walpole em O castelo de Otranto, lá no século XVIII. Mas deixemos em suspenso essa prolífera trilha para nos deter nas imagens produzidas pelo artista.
Há o sólido prédio revestido de tijolos de um marrom puxado para o vermelho, fotografado de quina, na diagonal da esquina em frente. O tijolo remete à arquitetura norte-americana de até meados do século XX, ao tempo do trabalho artesanal assentando bloco sobre bloco. As marcas do trabalho se esmaecem ao longo das duas fachadas, em particular no altura do chão, sujidade provocada por pichações esboçadas, despretensiosas, fruto de vandalismo vagabundo que avilta até a caixa de correios, uma cadeia de signos da falta de manutenção. A fachada menor, situada à esquerda da foto, apresenta a tradicional escada preta de incêndio; a da direita sofreu a colocação recente de uma chaminé prateada, um tubo gordo, provavelmente de alumínio, que avança verticalmente como uma cobra até atingir o topo do edifício, realizando antes uma rápida torção com a finalidade de evitar a cornija.
Foi isso que o artista com seu olho treinado encontrou. Agora vem o que ele construiu: conhecido pelo apuro de seus enquadramentos, Tuca enfatizou a aresta convexa deixando-a levemente deslocada para a esquerda do campo ocupado pela imagem, ao mesmo tempo em que compensou esse desequilíbrio deixando solto o poste de madeira, levando-nos a pensar em qual é o centro dessa imagem marcada pelas linhas verticais. Note-se também a sombra dos fios desse mesmo poste incidindo abaixo da escada de incêndio, formando uma diagonal suave e contrária a dela.
Pode-se separar o que ele achou do que ele construiu? Não creio, pois as ações são interligadas e se alimentam. Assim, não se pode largar essa imagem sem comentar a relação entre o vermelho do alto da placa (de estacionamento?), aplicada num postezinho torto situado à esquerda da foto, desafiador da imponência vertical do prédio, seu resquício de orgulho, com o vermelho do carrinho de lixo. E o que dizer das janelas? Do padrão branco das cortinas vedando todas as janelas do primeiro andar, contrastando com o branco acinzentado de ritmo irregular das janelas do térreo até as janelas do alto que refletem o céu misturado com a escuridão do ambiente interior. Acaso? Possivelmente. Mas não foi acaso a escolha do horário, fora do período comercial, garantia das cortinas cerradas e, acima de tudo, da ausência de gente, do puro silêncio que invade a cena, atípico dentro de uma grande cidade, subitamente tornada metafísica também em virtude das sombras longas (final ou começo do dia?) como as vistas urbanas de Giorgio de Chirico e, depois dele, as casa solitárias de Edward Hopper.
Chama a atenção o elenco de protagonistas e situações: o prédio baixo e atarracado com paredes cegas e uma marquise verde desproporcional aplicada a sua fachada, vestígio de uma ocupação mais recente. O revestimento de tijolos está imundo, desfez-se o branco com o qual pintaram a parede até a metade. Na fachada lateral vê-se dois buracos de aparelhos de ar-condicionado projetados para fora. Totalmente embutida, ensimesmada, a edificação é oposta a construção que lhe é colada, uma estrutura arejada, vazada de fora a fora, que sobe tapando o céu.
Uma terceira fotografia traz um muro verde de metal corrugado interrompido por um portão aberto, índice do entra e sai próprio de uma construção em andamento. Recorrente, disseminado pelo mundo afora, esse interessante recurso da engenharia civil de vestir com véus diáfanos um prédio sendo erguido, serve a um só tempo como medida de segurança e elemento de sedução aos passantes, anuncia o despojamento futuro da roupagem como a metamorfose de uma crisálida. É arquitetura/obra de arte, entendimento que exige atenção, afinal, como ensinou Cortázar numa narrativa pertencente ao História de Cronópios e de Famas, “na realidade o milagre aconteceu agora”. Nesse sentido ressalte-se a composição da imagem, as relações cromáticas que o artista percebeu, prova de que andar pela cidade propicia encontros com soluções plásticas estupendas (involuntárias?). Esse é um caso típico: o plano verde claro esparramado horizontalmente dialoga com o volume verde escuro como uma parede recoberta de limo. O marrom avermelhado dos tijolos que sobem por detrás, entrevisto pelas frestas do tecido, é complementar ao verde, assim como as linhas vermelhas finas e verticais que o percorrem de cima a baixo, organizando-o. Mencione-se ainda o plano de tijolos à esquerda da foto, no qual a contraposição entre o vermelho esmaecido e o verde também se coloca, e o ponto de fuga que é reiterado por uma construção baixa, uma fachada plana de formato trapezoidal situada à direita.
Notável a incidência de muros de toda sorte, de cercas aramadas a paredes ornamentadas, prenunciadores de acontecimentos futuros, incorporações prováveis ou a vulgar e obsessiva preocupação de salvaguardar o patrimônio, seja ele qual for. Quanto a isso surpreende que alguns sejam altos a ponto de bloquear a vista, o que se depreende pelos grafites borrados executados em seus pés, seus rodapés, talvez seja mais adequado dizer, e que por cima se arrematam em arames farpados presumivelmente eletrificados.
Fecho essa aproximação recomendando mais uma vez sob o risco de ler essas fotografias exclusivamente sob o prisma documental. A obra de Tuca Vieira não deve ser reduzida a ele, sob pena de eclipsamento da singularidade de seu olhar, sua capacidade de perceber as energias em curso na cidade, como os vetores concorrentes formados pelo muro colorido e a ponte metálica que lhe passa acima sustentada por cabos que descem em diagonais. Como a cerca que impede a rua Rio (sim, River Street, como diz a placa verde) de seguir em direção ao rio, barragem artificial que tem sua fragilidade aplacada pelos anúncios losangulares escritos sobre o amarelo típico da sinalética urbana, advertindo, a primeira delas, pendurada à esquerda, que se trata de um caminho sem saída, a segunda, mais franca, concisa e literal, que se trata do fim. Ao lado desse Fim, bem atrás dele, na lonjura, a imagem espectral do Empire State Building ou, simplesmente, o Império.
(Agnaldo Farias é crítico de arte, curador e professor da FAU-USP. Foi curador da Representação Brasileira da 25ª Bienal de São Paulo em 2002, curador geral do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro no período de 1998-2000 e curador-adjunto da 23ª Bienal de São Paulo)