Do viaduto
O viaduto da avenida Dr. Arnaldo é um dos mais bonitos de São Paulo. Não pelo valor estético da construção, e sim pela vista da cidade que proporciona. Com quase 30 metros de altura, ele tem até uma estação de metrô embaixo. De um lado, vê-se o bairro do Pacaembu, partes das Perdizes e da Pompéia. Do outro, Pinheiros, o Instituto Goethe e o muro do Cemitério São Paulo. Embaixo, corre a larga avenida Sumaré. O lugar é mais bonito à noite, e melhor ainda de madrugada, quando o silêncio e as luzes artificiais se impõem. O viaduto serve também de abrigo para necessitados e ponto de encontro de amantes. De plataforma para esportistas radicais e empinadores de pipas. É o lugar ideal para fumar um cigarro.
Briguei com a namorada na madrugada de segunda para terça-feira, 12 de março passado. Decidi fazer a pé o longo percurso de volta para casa, da Pompéia, onde ela mora, ao centro. Compraria uma cerveja e aproveitaria o silêncio da noite para pensar na vida. Talvez fizesse umas fotos pelo caminho.
Andei 40 minutos e nenhum boteco, nenhuma alma, nenhuma foto. Veio a vontade de voltar à casa da namorada. Ao me aproximar do viaduto, torcia para que o celular tocasse, que fosse ela. Vou atravessar e depois decido se volto ou vou em frente, pensei. Talvez fizesse ali uma foto. Depois do viaduto, havia o primeiro bar do caminho. Eu precisava tomar uma cerveja.
Distingui então um homem parado no meio do viaduto. Estava a uns 50 metros, em pé, imóvel, virado para o lado de Pinheiros. Incomodado, pois queria o viaduto só para mim, me aproximei. A 10 metros, ciente da minha proximidade, o homem sentou no beiral do viaduto, o corpo voltado para o abismo.
- Rapaz, não faça isso, gritei, como se tivesse tomado um choque elétrico. O homem, bem mais calmo do que eu, apenas virou a cabeça e disse, com lentidão:
- Eu vou me matar.
- Não faça isso, repeti, agora mais calmo, como se qualquer palavra fora do lugar pudesse empurrá-lo para baixo. Ele desceu e ficou parado na minha frente.
Era um homem alto e forte, cabelo curto e claro. Parecia um descendente de alemães, desses que moram no Sul. Aparentava uns 50 anos. Talvez tivesse menos, não sei. Tinha o rosto marcado. Seus olhos claros me olhavam com curiosidade. Estava um pouco alterado, embora não desse para perceber efeitos de álcool ou de droga.
Estava mais interessado em ouvir do que em falar.
- O que te aconteceu, rapaz?, perguntei.
- Minha mulher me largou e levou meus filhos, não quero mais viver.
- Mas rapaz... vou te pagar uma cerveja, disse eu, acreditando ter tido uma idéia genial, querendo sair daquele lugar o mais depressa possível, eu que gosto tanto do viaduto.
- Não quero, vou me matar, respondeu ele, indiferente.
Não acreditei muito, como não se acredita muito que alguém queira se matar. Na minha incredulidade, pensei que alguém que quer mesmo se matar não pula de um viaduto, isso é coisa de filme. Tive o trabalho de perceber que, se ele pulasse, cairia em cima do canteiro central da Sumaré, onde há um pouco de grama e terra. Pular na pista seria mais eficiente.
- Eu me chamo Tuca, e você, qual o seu nome?, perguntei, para criar um pouco de intimidade, como quem inicia uma longa conversa. E lhe estendi a mão, que ele apertou sem força. Prossegui, tentando dissuadi-lo:
- Você vai encontrar uma solução para isso, meu amigo, você vai fazer um monte de coisa legal na vida.
- Não quero mais, ela tirou meus filhos de mim, não deixa mais eu ver eles, disse ele, imóvel, na minha frente.
- Você trabalha, tem emprego?
- Tenho.
- Onde você mora?
- Moro aqui, na Pompéia.
- Vem comigo, vou te levar para casa, disse eu, olhando para a rua, já à procura de um táxi.
- Não vou não, não quero mais viver, disse ele, e pela primeira vez expressou tristeza.
Eu não sabia o que fazer. O homem não reagia. Ficava quieto. Achei que ele estava esperando algo de mim. Que deveria haver alguma palavra mágica que o tirasse dali.
- Veja só, também acabei de brigar com minha namorada, não estou muito bem, mas a vida tem um monte de oportunidades boas, a gente não pode se entregar, disse eu, buscando compaixão. Tinha medo de dizer qualquer coisa, de piorar a situação. Nunca me preparei para um momento como esse.
Voltei ao assunto da mulher, parecia ser a única coisa em que ele pensava:
- Você já pensou em procurar ela, explicar a situação?
- Ela sumiu, levou meus filhos, não me deixa mais ver meus filhos, ele repetiu. Continuava imóvel. Vou arriscar, pensei:
- Mas rapaz, você é um cara jovem, forte, vai encontrar alguém que te dê alegria.
Ele não respondeu, olhou para o lado, como que decepcionado comigo.
Nesse momento, minha namorada ligou e perguntou onde eu estava. "Olha, estou no viaduto da Dr. Arnaldo com um amigo", falei alto, para os dois ouvirem. "Eu não posso falar agora, mas diz a ele que você me ama", pedi, tentando passar o telefone para ele, que não quis conversa. "Depois eu falo contigo, é muito sério", disse a ela, e desliguei o telefone.
- Tem certeza de que não quer que eu te leve para casa?, insisti.
- Não.
Ficamos em silêncio. Eu já não agüentava mais. Ele percebeu. Pela primeira vez, disse algo sem que eu perguntasse:
- Pode ir embora.
- Mas não quero te deixar aqui sozinho.
- Vai, vai embora, me deixa sozinho, disse ele sem paciência, para encerrar o assunto.
- Tá bom, mas fique bem, você vai encontrar seu caminho, disse eu, desistindo.
- Pode deixar, vou ficar bem, vai embora, ele falou.
Não havia muito que eu pudesse fazer. Ele já estava indisposto comigo, e respeitei sua vontade de ficar sozinho.
- Fica bem, meu caro, você é forte, me despedi.
Ele acenou com a mão. Caminhei uns 20 metros e olhei para trás. Lá estava ele, no meio do viaduto. Em pé, as mãos sobre o beiral e os olhos na cidade. Senti um alívio: pelo menos vou deixá-lo do mesmo jeito que o encontrei. Caminhei mais uns 20 metros. Com vergonha da minha própria curiosidade, virei para trás, o mais discretamente possível, para olhá-lo uma última vez.
Sou fotógrafo. Com a fotografia aprendi que as imagens mais importantes não se registram na câmera, mas na memória. O ato e o tempo de levantar a câmera, regular os mecanismos, posicionar o foco, fazer o enquadramento, exigem a consciência e a reflexão que o olho dispensa. O olhar se regula sozinho e revela na hora. Não é preciso ser fotógrafo para colecionar imagens. Todos têm o seu álbum de fotografias impalpáveis, que se conservam na memória. Algumas delas a gente carrega para sempre.
O homem sentou no beiral e, delicadamente, empurrou o viaduto para trás. Seguiu-se um som curto e grave. Foi como se a Terra se abrisse sob meus pés.
- Puta que o pariu, o cara se jogou!, gritei para o viaduto, para o asfalto, para os edifícios, para a noite.
Voltei correndo para o ponto onde conversáramos, como se ainda pudesse puxá-lo pelo braço. Olhei para baixo. Peguei o telefone.
Liguei para o 190, polícia:
- Alô, olha, um homem se jogou do viaduto da Dr. Arnaldo e caiu na avenida Sumaré, tentativa de suicídio, precisa mandar alguém rápido, ele pode estar vivo.
- O senhor tem algum ponto de referência?, a moça perguntou.
- Ponto de referência? Avenida Sumaré, embaixo da Dr.
Arnaldo, embaixo do metrô Sumaré, todo mundo conhece.
Tomei coragem e olhei de novo para baixo. Lá estava o corpo. Estendido, imóvel, a cabeça virada para baixo, a camisa levantada, deixando o dorso exposto, os membros com mais dobras do que deveriam ter. Ele caiu bem no meio do canteiro central, os carros passando dos dois lados da avenida. Levantei os olhos e foi como se o tempo parasse. A cidade toda se mostrava enorme, ameaçadora e indiferente, envolta no silêncio que só a profunda madrugada é capaz de produzir.
O que fazer? Preciso fazer alguma coisa. Pego a câmera e logo me reprimo. Fazer uma foto seria o ato mais insensível que alguém poderia ter. Mas por que diabos ando sempre com uma câmera? Até quando vou à esquina comprar cigarro, levo uma comigo. Justamente porque alguma coisa sempre pode acontecer. E eu precisava fazer alguma coisa, pelo menos para acreditar que tudo não tinha sido um pesadelo.
Peguei a câmera. Havia pouca luz e, para ter estabilidade, apoiei os cotovelos no beiral, no mesmo lugar de onde ele havia se jogado, virei para baixo e fiz uma foto. Ardendo de culpa, chorando em desespero, fiz outras fotos. Sempre o mesmo enquadramento, com a frieza de variar a velocidade, com medo de tremer a imagem. Treze fotogramas, todos iguais.
Passaram-se uns quinze minutos até que a sirene do resgate rompeu o silêncio. O carro dos bombeiros passou ao lado do homem sem vê-lo. Assobiei de cima do viaduto. Os bombeiros atravessaram o canteiro. Um deles chegou perto do homem e fez um sinal, que os outros entenderam imediatamente. O que estava mais longe foi até o carro e pegou um lençol branco.
Desci por uma espécie de calha junto à encosta do morro, que forma uns degraus enormes, como uma escada de gigantes. Atravessei a avenida sem cuidado, e logo disse aos bombeiros:
- Eu vi ele se jogar, estava conversando com ele, vi tudo.
Como se soubesse o que eu estava pensando, na certa acostumado a esse tipo de situação, um bombeiro respondeu a pergunta que eu havia feito a mim mesmo:
- Fica calmo, você não poderia ter feito nada.
O corpo já estava coberto com o lençol branco. Olhei para cima e o viaduto me pareceu muito maior e mais alto do que era. Aquela estrutura enorme apoiada nas extremidades a desafiar a gravidade, com toda uma estação do metrô dentro de si, estava mais sólida do que nunca. O viaduto acabara de mostrar a mais trágica de suas finalidades.
(texto originalmente publicado na revista Piauí #7, abril de 2007)