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Fotografia infinita

Guilherme Wisnik

 

Essa enorme fotografia é feita de muitas outras. Cento e cinco, mais precisamente. Assim, cada fotograma é, ao mesmo tempo, célula de um conjunto grande e coeso, e unidade auto-suficiente de um olhar que mergulha nas cenas que se apresentam a sua frente, buscando detalhes da vida íntima alheia. E, assim, como que em um jogo de detetive, cenas inesperadas – já que invisíveis a olho nu – vão saltando à vista através da câmera: pessoas na janela, silhuetas veladas através de vidros translúcidos, fotos, desenhos e objetos situados no fundo dos apartamentos etc. Não se trata apenas de voyeurismo. Aqui, a poética do fotógrafo se irmana à ficção cinematográfica e literária. Penso imediatamente em Janela indiscreta (1954) de Alfred Hitchcock, assim como em Blow-Up (1966) de Michelangelo Antonioni, inspirado no conto Las babas del diablo (1959) de Julio Cortázar. O jogo de suspense instaura enigmas que transcendem a compreensão causal das coisas. Vivemos em um grande labirinto. As teias da vida cotidiana são infinitas, e às vezes se cruzam em lugares impróprios. O grande jogo lúdico do acaso dispara relações associativas incontroláveis, que podem nos levar até a desvendar um crime através de ampliações sucessivas de uma foto, tal como acontece em Blow-Up. Toda essa rede de possibilidades está implícita nesse trabalho de Tuca Vieira - V. se encontra na posição da seta. Escrita em um luminoso localizado em uma das entradas do edifício, essa frase de identificação informativa pode ser vista também como índice de rastreamento e vigilância: você está mapeado, registrado, grampeado.

Aqui, Tuca Vieira elabora artisticamente a noção de mapeamento. Pois não se trata apenas de uma vigilância panóptica. Aliás, não estamos mais no plano paranoico do “olho do poder” descrito por Michel Foucault. Trata-se, agora, de uma vigilância que envolve sedução, buscada e consentida em certa medida, como nos reality shows televisivos, ou nos sobrevoos e mergulhos repentinos proporcionados pelo Google Earth, amplificados mais recentemente nas cenas ao mesmo tempo anônimas e indiscretas do Street View. Se o mapeamento é um dos temas centrais da arte contemporânea – pelo menos desde Robert Smithson, no final dos anos 1960 –, Tuca Vieira desdobra a questão a partir do universo simbólico engendrado pelas tecnologias de busca e mapeamento digital nos anos 2000, tais como Google e GPS, focalizando um ícone arquitetônico de São Paulo.

Nossa experiência diária está saturada de imagens. Vivemos envoltos por imagens, tanto palpáveis quanto virtuais. Fotografamos e filmamos tudo a todo momento, armazenando o mundo em memórias digitais que ficarão disponíveis para que qualquer pesquisador futuro saiba tudo sobre a vida que levamos hoje. O consumo obsessivo extravasou o mundo das coisas para atingir também suas representações. Diferentemente do que queria Hélio Oiticica nos anos 1960, não é o museu que virou mundo, e sim o mundo que se museificou. Consumimos também a representação do mundo, suas infinitas imagens. Nesse sentido, o trabalho de Tuca Vieira dialoga com essa banalização. Mas reverte essa espiral da variedade infinita e irrelevante a seu favor. Alguma forma de controle e organização se mantém. Os cento e cinco fotogramas reunidos compõem uma imagem única. Única, porém falsa como totalidade, já que as fotos não foram tiradas no mesmo instante e, portanto, as cenas que vemos nunca estiveram juntas ali. 

Mas o que é a realidade? Não será a realidade sempre uma construção? À medida que se aproximam de objetos menores, recortando pedaços da imagem, as fotos de Tuca Vieira se pixelizam, assumindo o artifício, isto é, a realidade digital do trabalho. Ou será a realidade digital do mundo? Já não distinguimos bem o rosto de uma pessoa real em relação a uma foto que estava sobre a parede do apartamento em forma de pôster. Não poderíamos supor haver uma identidade entre os pixels de um rosto muito ampliado e os padrões geométricos das superfícies de cobogó que vedam as varandas de serviço no Copan? De que padrão visual e construtivo é feita a nossa vida? Será que aquele rosto não é o seu? Perguntas como essas se amplificam à medida que percorremos essas imagens. E quanto mais buscamos os segredos dos outros, mais nos lembramos de que nós é que estamos sempre na posição da seta.


Gulherme Wisnik é professor na FAUUSP. É autor dos livros Lucio Costa (Cosac naify, 2001), Caetano Veloso (Publifolha, 2005) e Estado crítico: à deriva nas cidades (Publifolha, 2009), entre outros. É membro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte, e da LASA – Latin American Studies Association. Crítico de arte e arquitetura, foi curador do projeto de Arte Pública margem (itaú Cultural, 2008-10), das exposições Cildo Meireles: rio oir (itaú Cultural, 2011) e Paulo Mendes da Rocha: a natureza como projeto (Museu Vale, 2012). É o curador da 10a Bienal de Arquitetura de São Paulo (2013). 

Galeria Mario Schenberg, Funarte 2013

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